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Cervejas de Inverno

CERVEJAS DE INVERNO

Com a chegada de Bóreas, os dias não só ficam mais gélidos como também mais escuros; aquela imagem quase sempre associada às cervejas, como uma bebida refrescante, evade-se e a apetência dá lugar para bebidas mais reconfortantes, porém, a cerveja confirma-se versátil… é temporada das Winter Seasonal Beers e afins.

Embora estas cervejas sazonais estejam catalogadas e categorizadas nos guias, não compreendem rigorosamente um estilo efetivo como concebemos, tratam-se de receitas muito abrangentes, mas representam, sem dúvidas, uma tradição cervejeira, muito difundida, vinculada às festividades de final de ano, sobretudo nos países da Europa germânica, acometidos pelo rigoroso Inverno setentrional.

Pode-se dizer que a herança cultural ligada às cervejas de Inverno é muito mais antiga que o próprio conceito moderno de cerveja e tem raízes nas festividades pagãs remanescentes no continente europeu até a Idade Média.

Nos reinos da Escandinávia e ilhas adjacentes, no decorrer da Era Viking, os povos germânicos que ali viviam tinham o costume de se embebedar com «alu» para celebrar o solstício de Inverno; as Festas de Jól ocorriam entre os meses de Dezembro e Janeiro, e, todos os fazendeiros que cultivavam cereais tinham um compromisso com a tribo, sob pena de Lei, de produzir cerveja e compartilhá-la – naquela altura, a embriaguez era considerada uma reverência religiosa.

Com o processo de cristianização, nos séculos seguintes, a passagem de Yule foi absorvida pelo calendário litúrgico e convertida na comemoração do Natal. A herege adoração extática foi extinta pela Reforma Protestante e, na contemporaneidade, as cervejas deixaram de ser um produto agrícola para serem fabricadas por cervejarias comerciais. Ainda assim, nesta época do ano, os nórdicos mantiveram o hábito de consumir a «Juleøl», ou «Julöl», literalmente “cerveja de Natal”.

Essas ales, tipicamente, possuem um perfil mais maltoso e caramelizado oriundo de maltes especiais tostados, além de uma maior graduação de álcool por volume que as cervejas correntes. Porém, as recentes restrições quanto ao consumo de bebidas alcoólicas nestes países têm feito surgirem exemplares mais leves.

No Reino da Germânia, tanto as Weihnachtsbiere quanto as Osterbiere, respectivamente, cervejas de Natal e de Páscoa, originalmente possuíam uma concepção que não a festiva, mas ainda assim de consagração. A cerveja com o atributo de “pão líquido” era um alimento permitido para os clérigos e demais devotos durante o jejum religioso. Inclusive, há registros de que o próprio Martin Luther tenha exaltado o quilate da «Einbecker Bier» no Parlamento de Worms, realizado pelo Sacro Império Romano-Germânico em 1521.

A afamada Ainpöckisch Pier ganhou uma nova versão, um século depois, quando um cervejeiro de Einbeck levou sua fórmula para a Baviera. Lá a receita precisou adaptar-se ao Reinheitsgebot e aos ingredientes locais: sem uso da porção de trigo no grist, agora com malte do tipo Münchner e menos lúpulo na brassagem. Deste modo deu origem à tradicional Dunkles Bockbier.

Embora as Bockbiere não sejam essencialmente estilos classificados como Winterbier, sua maior carga de malte e potência alcoólica prestam-se muito bem para ajudar a suportar a aproximação das massas de ar polar. Hoje, pode-se considerar que a Weihnachtsbier, também conhecida como «Weihnachtsbockbier», é a especialidade sazonal da Baviera produzida para o Advento, cujas notas caramelizadas e de frutas passas remetem aos doces típicos desta estação.

Já para os britânicos, a intenção de consumir cerveja no Inverno estava, na verdade, vinculada às bebidas compostas elaboradas como estimulantes físicos e/ou nutritivos que consistiam numa combinação de ale aquecida com especiarias e uma imensidade de outros ingredientes conforme cada receita.

A partir do século ⅩⅤ, conforme o uso do lúpulo tornou-se mais abrangente, gradativamente, o consumo destas bebidas típicas de Inverno ficou ultrapassado, isso porque este insumo cervejeiro sabidamente reage mal com o calor. Entretanto, como alternativa, os cervejeiros passaram a desenvolver cervejas por via de regra mais robustas, com maior caráter maltado, dulçor residual e aquecimento alcoólico presente, anunciadas como «Winter Warmers» ou «Winter Beers»; muitos rótulos também aparecem como «Christmas Ales».

Todas estas cervejas desenvolvidas como receitas sazonais podem ser agrupadas sob as Strong British Ale, uma categoria que engloba alguns estilos congêneres da Grã-Bretanha, das quais cada uma tem suas particularidades, mas convergem em comum pela força alcoólica. Com a demanda do consumidor por cervejas mais intensas, algumas destas cervejas foram incorporados ao portfólio regular das cervejarias.

Na Bélgica, embora haja uma extensa profusão de estilos de cervejas ricas e fortes, bastante propícias para aquecer durante os meses mais frios, acredita-se que o gérmen das cervejas de Natal chegou ao país, provavelmente, no finalzinho do século ⅩⅨ, através de cervejas inglesas importadas para as festividades da Quadra Natalícia. Tanto que, nos primeiros anos do século ⅩⅩ, já foi possível observar alguma diversidade de ofertas destas cervejas anunciadas como «Christmas Ales» em determinados bares e cafés.

Atualmente, grande parte das cervejarias belgas produzem edições especiais para a natividades, rotuladas como «Brassin de Noël», «Bière de Nöel» ou «Kerstbier»; na generalidade, receitas carregadas de condimentos e ingredientes que evocam a época de Natal.

Nesta lista de Bière de Saison podemos ainda incluir as Lambiekbieren. Inspirada na bebida típica desta estação conhecida como Glühwijn, ou, em português, “vinho quente”; na década de 1990, a cervejaria flamenga Vanhonsebrouck lançou a St-Louis Glühbier, resumidamente, uma Specialty Kriek Lambic – uma cerveja ácida produzida com cereja-azeda, com caráter frutado, e neste caso temperada com especiarias, bastante dominantes; amargor e sabor de lúpulo ausentes; com um balanço mais doce que a regular acidez – feita para ser bebida quente.

Tal e qual os belgas, os cervejeiros norte-americanos também usam mão de condimentos, se calhar mais, além de outras fontes de açúcares e demais adjuntos para expressarem sua criatividade. Estes compõem uma tradição mais recente que ascendeu a partir da década de 1970 com o movimento Craft Beer, de onde surgiram muitos estilos novos, mas do mesmo modo reviveram estilos antigos, locais ou importados; bem como incluem-se as «Holiday Ales».

Uma destas cervejas que vale ser citada é a Pumpkin Ale, uma receita singular feita pelos colonos, que remete ao século ⅩⅧ, orginalmente mais parecida com um “vinho de frutas” feito com sumo de abóbora fermentado com especiarias, agora com adição de malte e lúpulo. Ainda uma Autumn Seasonal Beer produzida para o feriado de Acção de Graças, esta cerveja sabe a tradicional torta de abóbora.


Artigo publicado na revista O Escanção №176 Novembro/Dezembro de 2020
pela Associação dos Escanções de Portugal (EAP)
na seção “Com a Palavra, o Especialista”.

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