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O legado da cerveja Pilsner

O LEGADO DA CERVEJA PILSNER

Quando se fala em cerveja pils(e)ner, o consumidor provavelmente logo a associa aos rótulos standard das grandes cervejarias. Contudo, essa é provavelmente uma designação equivocada. O estilo mais produzido e consumido no mundo é o American Lager, ou melhor, por uma questão gentílica vamos chamá-lo de International Pale Lager.

Vale notar, primeiramente, que essa dúvida ou desinformação não é culpa do público. Por muito tempo, muitas cervejarias rotularam comercialmente suas bebidas como «tipo Pilsen» ou equivalente. Não houve necessariamente má fé, até porque muitas marcas já eram comercializadas sob tais rótulos antes dessas classificações categóricas começarem a ser feitas nos idos da década de 1970. Ao mesmo tempo, as respectivas legislações basicamente só classificam os tipos de cerveja por matiz e teor alcoólico, sem se atentaram às taxonomias usadas nos guias de estilo ou às indicações geográficas.

Mas afinal, o que é uma cerveja pilsener e qual a diferença entre ela e uma pale lager?

Embora a denominação de origem não seja unanimemente reconhecida, para alguns puristas só existe um estilo tido como tal: o Bohemian Pilsner, concebida pelo mestre-cervejeiro bávaro Josef Groll, em 1842, enquanto trabalhava para um grupo de investidores que deram início à cervejaria Plzeňský Prazdroj, situada na cidade tcheca de Plzeň, no então Reino da Boémia.

A cerveja Pilsner Urquell, literalmente a «pilsener original» foi quem definiu um novo padrão para as cervejas límpidas e de cor clara, como conhecemos hoje. É preciso ter em mente que até a primeira metade do século ⅩⅨ as cervejas eram relativamente escuras e opacas; somente com o advento da Revolução Industrial que se melhorou os processos de brassagem e secagem do malte, resultando assim em grãos não tostados.

A receita de Josef Groll foi uma resposta inventiva à popularidade da contemporânea English Pale Ale. Utilizando a técnica de decocção para controlar a mostura do malte de cevada oriunda dos vales da Morávia, com as águas moles do rio Radbuza, adição da variedade de lúpulo nobre de Žatec e uma cepa de levedura de baixa fermentação a trabalhar em barris de carvalhos nas caves subterrâneas; Groll obteve uma cerveja equilibrada entre o malte e o lúpulo, com uma bela coloração dourada e espuma densa; malte rico e complexo; um nítido floral do lúpulo, com amargor aparente, mas não muito severo e persistente.

Tal cerveja logo alcançou glória e passou a ser exportada aos países vizinhos, não demorou para outros cervejeiros locais tentarem reproduzir a receita de sucesso e emplacarem o nome «Pilsner Bier» como marca comercial para qualquer «Světlé Ležák», designação tcheca para as cervejas pale lager.

Conjuntamente, o Reino da Prússia, grande potência da época, também se arremedou a produzir sua versão da Pilsner – mais leve, seca, atenuada e carbonatada, menor amargor, porém mais prolongado, devido a terem substituído o lúpulo tcheco Saazer com notas terrosas e leve picância por variedades de lúpulos nobres alemães como Hallertauer Mittelfrüh, Tettnanger e Spalter, mais intensos em notas florais e ervais.

A Bohemian Pilsner não apenas inspirou a contígua German Pils em 1870, como influenciou profundamente o cenário cervejeiro nos demais estados do Império Alemão a produzirem um sortimento de Lagerbiere de maltes claros.

Os cervejeiros da região industrial de Dortmund, na Província de Westfalen, criaram sua Dortmunder Exportbier e até mesmo a cidade de Colónia, na Província do Reno, deu uma resposta protecionista com a Kölsch que, apesar de elaborada com leveduras de alta fermentação, é acondicionada e maturada a temperaturas baixas conforme o processo de Lagerung.

Para o orgulho ferido do tradicional Reino da Baviera, somente em 1894, cerca de meio século transcorrido, quando enfim conseguiram ministrar o alto teor de minerais na sua água, o mestre-cervejeiro Gabriel Sedlmayr Ⅱ, responsável pela Spatenbräu, criou a primeira Münchner Helles com mais balanço para o malte do que para o lúpulo.

As lagers eram tidas como mais leves e refrescantes, servidas em taças de cristal e representadas com elegância, passaram a retratar o estilo de vida da burguesia urbana que se consolidava naquele período; contrapondo o arquétipo antiquado de empanzinamento associado às ales que outrora eram servidas nas tabernas em canecas de cerâmica.

Esse fulgor causado pela Pilsner atravessou o Oceano Atlântico com os imigrantes alemães que chegaram em massa aos Estados Unidos na segunda metade do século ⅩⅨ. O maior grupo étnico em solo americano, à altura, naturalmente iria tentar reproduzir, entre outras, a receita desta estimada cerveja com os insumos que tivessem disponíveis. Começa então a se desenhar o prelúdio da American Lager.

Insubordinadas à alheia Reinheitsgebot, famosa «Lei da Pureza», as primeiras cervejas tidas como American Pilsener chegavam a conter até ¼ de cereais não maltados como milho ou arroz, fosse para ter uma cerveja ainda mais leve ou baratear custos. O que para alguns ortodoxos pode soar como heresia, é na verdade apenas a absorção de uma matéria-prima endêmica; o milho já era cultivado pelos nativos pré-colombianos para produzirem o tesgüino.

Porém, as maiores mudanças para a indústria de bebidas vieram com o período da Prohibition, lei seca que vigorou plena nos Estados Unidos de 1920 a 1933, que somada à Grande Depressão não apenas afetou hábitos de consumos como também as demandas dos insumos agrícolas.

A cevada, que não se presta tão bem a outros empregos como na mosturação para produção de cerveja e uísque, por motivos óbvios tornou-se escassa e como consequência cedeu mais porcentagem ao uso de adjuntos como fontes amiláceas; analogamente, os clones dos lúpulos trazidos também tiveram sua participação debilitada e, para suprir essa carência, variedades autóctones americanas como o Cluster passaram a ser usadas. Mas tanto o grist quanto o lúpulo tiveram suas dosagens racionadas – como resultado obtiveram uma cerveja quase insípida, porém, há versões puro malte ou com menos adjuntos classificadas como Premium American Lager.

Na Europa, a primeira metade do século ⅩⅩ foi marcada por uma imensa assolação em função das duas Guerras Mundiais que destruíram grande parte da infraestrutura e, como consequência direta fez, muitas cervejarias suspenderem operação.

Ao fim, os norte-americanos, consagrados vitoriosos, se consolidam como os maiores fornecedores comerciais globais, vendendo não apenas seus produtos, como também seu modelo de vida e padrão de consumo para as demais nações sob a sua influência. Enquanto os alemães reconstruíam seu território (e prestígio) e a tradição tcheca ficou adormecida sob o Bloco do Leste, a American Lager difundiu-se mundo afora.

Com a dissolução da União Soviética, os tchecos retomaram sua economia. Somente na última década, o número de micro-cervejarias ativas mais que quadruplicou e atualmente investem bastante em turismo vinculado à sua rica cultura cervejeira.


Artigo publicado na revista O Escanção №171 Janeiro/Fevereiro de 2020
pela Associação dos Escanções de Portugal (EAP)
na seção “Com a Palavra, o Especialista”.

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