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Cervejas de trigo – parte Ⅱ

CERVEJAS DE TRIGO – PARTE Ⅱ

Para dar continuidade ao tema, para além do recorte visto na Baviera, é preciso dissecar os demais territórios multiétnicos da Europa Central ao longo dos últimos séculos para entender como o cenário político-cultural e as relações comerciais interterritoriais de outrora influenciaram, consecutivamente, no uso de determinados insumos, na troca de conhecimentos e nos métodos de produção de cerveja.

Nos estados ao norte do Sacro Império Romano-Germânico, sobretudo nas cidades membro da Liga Hanseática, encontram-se uma diversidade de cervejas icónicas, muitas delas elaboradas com trigo.

A cidade portuária de Hamburgo produziu, no século ⅩⅣ, possivelmente, o predecessor das cervejas de trigo conhecidas, quando os hamburgueses, que também foram uns dos primeiros a empregar lúpulo na cerveja, mudaram a receita de uma Rotbier feita de aveia, predominantemente, mais trigo, para uma cerveja feita com maltes de cevada e trigo, descrita como «Hamburger Weißbier». Tal estilo foi replicado noutras grandes cidades da época como Bremen, Lübeck e Wismar.

Outra das cervejas mais antigas feitas com trigo, cujo registro chegou aos nossos dias, foi a Braunschweiger Mumme; a sua manufatura remete, provavelmente, aos primórdios da cidade de Brunsvique, localizada na Baixa Saxónia. O documento mais velho a citá-la data de 1390. Sua génese é carregada de fábulas e pouco se sabe do que é facto. Houve muitas variações para o estilo, na realidade, a popularidade desta cerveja fez com que houvesse muitas falsificações e tentativas de reprodução da receita, o que pode explicar o uso de tantos ingredientes. A Mumm era geralmente descrita como uma cerveja escura, bastante viscosa, com alta doçura, elevado teor alcoólico e temperada não somente com lúpulo bem como com um sortimento de ervas e especiarias. Essas características conferiam-lhe grande longevidade, ideal para servir como provisão. Foi exportada para demais regiões da Europa e durante a Era das Grandes Navegações para as Índias Orientais e Ocidentais; versões Doppel, mais robustas, feitas para durar nas viagens de navio ficaram conhecidas como «Schiff-Mumme».

Em Hanôver, também na Baixa Saxónia, a Hannoverische Broyhan era uma cerveja leve de trigo, ainda sem lúpulo, que usava maltes secos ao vento e não tinha o caráter defumado comum às cervejas da época. A receita atribuída ao mestre-cervejeiro Conrad Breihan, que viveu durante o século ⅩⅥ, ganhou grande fama e também teve versões reproduzidas noutros sítios.

Um estilo sui generis, criado na Idade Média, originário da cidade de Goslar, onde corre o Rio Gose, a Leipziger Gose ganhou maior relevância na Lípsia, região da Saxónia, por volta de 1740 até sua produção desmoronar com o desenrolar da Segunda Guerra Mundial e cessar completamente em 1966. A produção foi retomada na década de 1980, mas ainda é um estilo pouco difundido. Esta cerveja leve e atenuada, bem carbonatada, possui um carácter salino e ácido-lático. A Gose é feita com maltes de cevada e trigo (sendo que alguns rótulos possuem ademais malte de aveia e grãos não maltados), recebe pouco lúpulo e é temperada com sal comum e coentro fresco o que lhe confere notas ervais e cítricas.

Próxima às fronteiras da Saxónia e da Boémia, a histórica cidade da Breslávia, na Silésia, actual região da Polónia, no século ⅩⅥ, produzia uma cerveja escura com até 80% de malte de trigo conhecida como Breslauer Schöps. A partir do século ⅩⅨ também passaram a fabricar versões com malte claro desse estilo e posteriormente, no mesmo século, versões com menor proporção de trigo e com leveduras de baixa fermentação.

Na voivodia da Grande Polónia, a cidade de Grodzisk Wielkopolski ficou conhecida pela Piwo Grodziskie ou «Grätzer» – nome germanizado de quando a região integrou o Reino da Prússia. Um estilo a datar os idos do século ⅩⅦ que se popularizou na virada do século ⅩⅨ ao ⅩⅩ, mas também declinou a partir da Segunda Guerra Mundial. A Grodzisz é feita com trigo maltado seco com lenha de carvalho, cujo defumado é bem menos intenso do que nas Rauchbiere. Uma cerveja clara, leve, seca e altamente efervescente que ganhou a alcunha de «Grodziskim Szampanem».

Uma designação análoga de «Champagne du Nord» foi dada à Berliner Weißbier, por conjectura, pelas tropas napoleónicas que ocuparam o território após a vitória sobre a Quarta Coalizão. Este estilo procedente do entorno de Berlim, na Marca de Brandemburgo, remete ao século ⅩⅦ e supostamente teve a Schöps e a Broyhan como modelo. A Berliner Weisse é feita com metade malte de trigo e tem uma fermentação conjunta de leveduras e lactobacilos que resulta em uma cerveja de coloração clara, ácida, refrescante e com baixo teor alcoólico. Para contrabalancear sua acidez acentuada, a cerveja é tradicionalmente servida juntamente com uma dose de xarope de framboesa ou de aspérula.

A incógnita Lichtenhainer também vale ser citada, uma especialidade regional da cidade de Lichtenhain, na Turíngia. Mais uma cerveja ácida, leve e clara, produzida com 30% a 50% de trigo maltado que merece atenção pela combinação única entre azedo e defumado.

Estilos germânicos seculares como a Kölsch e a Düsseldorfer Altbier também poderiam conter pequenas porções de trigo na sua composição, sem necessariamente serem pensados como cervejas de trigo.

Nos territórios compreendidos pela região histórica dos Países Baixos, as formulações de cervejas ancestrais eram frequentemente baseadas em grãos que não a cevada e o trigo sempre foi utilizado como ingrediente sem quaisquer restrições. Muitas cervejarias copiavam receitas célebres oriundas de outras cidades hanseáticas, mas, da mesma forma, desenvolveram estilos próprios relevantes, hoje esquecidos.

Durante a Baixa Idade Média, no final do século ⅩⅣ, os holandeses produziam uma cerveja conhecida como Kuitbier elaborada metade com malte de uma variedade rústica de aveia, que era mais barata, e o restante respectivamente com maltes de cevada e trigo; naquela época já com adição de lúpulos continentais. Em função do preço acessível, o estilo popularizou-se e difundiu-se pelas regiões vizinhas no Condado da Flandres e norte do Reino da Germânia – onde encontramos algumas variações etimológicas para o nome como «Koyt» ou «Keut», entre outros. Em 1617, os cervejeiros da Antuérpia diminuíram a proporção de aveia em relação aos maltes de cevada e de trigo. Há registros desse estilo até o início do século ⅩⅩ.

Por volta do século ⅩⅦ, cervejarias de origem neerlandesas situadas no Principado de Liége, na região da Baixa Lorena, produziam uma cerveja âmbar com metade malte de espelta, igualmente denominado como trigo-vermelho, e o restante com malte de cevada e trigo não maltado; também temperada com variedades locais de lúpulo. Tal cerveja produzida até o século ⅩⅨ era conhecida como «Luiks Bier» e possuía uma grande carga de grãos e lúpulo. Ainda no mesmo século, alguns cervejeiros diminuíram a maltosidade da receita, sem deixar de ter o espelta como base, o que na verdade fez surgir duas variantes: uma mais leve para o Verão e outra mais forte para o Inverno. A sazonalidade dessa cerveja também a tornou conhecida como «Saison de Liège».


Artigo publicado na revista O Escanção №173 Maio/Junho de 2020
pela Associação dos Escanções de Portugal (EAP)
na seção “Com a Palavra, o Especialista”.

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