CERVEJAS DE TRIGO – PARTE Ⅰ
Para muitos da minha geração, antes da moda craft beer ter chegado, as cervejas de trigo alemãs foram uma porta de entrada para se experimentar algo além das massificadas pale lager. A maioria das Weizenbiere enquadram-se como uma «cerveja corrente», ainda leves e refrescantes, com baixo amargor, mas que trazem, além disso, notas frutadas e condimentadas.
Justamente em função dessa alta drinkabillity, hoje, tais cervejas sofrem um certo preconceito por alguns que se consideram bebedores experientes. Mas, como veremos, as cervejas de trigo na verdade compõem diferentes categorias e abrangem diversos estilos. Alguns deles, actualmente, bastante difundidos mundo afora e disponíveis nas prateleiras de qualquer supermercado, por muitos séculos foram restringidos à elite; outros, ou quase todos, nas últimas décadas quase se perderam.
Historicamente, variedades ancestrais tanto do trigo quanto da cevada compartilham sua origem de cultivo no Crescente Fértil; não por coincidência, região onde também surgiu a cerveja. Tal e qual outros cereais, como a aveia e o centeio, ambos foram utilizados para produção de bebidas alcoólicas fermentadas; porém, ao longo dos anos, a cevada mostrou-se mais apropriável às técnicas de mosturação e por isso se estabeleceu maioritariamente. Não obstante, é comum que os mestres-cervejeiros misturem diferentes proporções de grãos e maltes ao grist para alcançar determinados resultados na elaboração das suas receitas.
O imaginário comum tende a associar o Reinheitsgebot, notória «Lei da Pureza», a parâmetros de qualidade no controle dos insumos para a fabricação de cerveja. Entretanto, o regulamento promulgado em 1516 no então Ducado da Baviera por Wilhelm Ⅳ, a princípio, tinha como objetivo uma mera questão tributária sobre a produção agrícola e destinação de recursos. Ao limitar explicitamente o uso de cevada à cerveja, como consequência disponibilizaria o trigo somente à alimentação.
Isso não significa que, naquele período, as cervejas de trigo não fossem produzidas na Alta Baviera, na realidade havia um monopólio da nobreza feudal para produção das mesmas. O clã Degenberg obteve em 1520 o privilégio exclusivo e vitalício de produzir cervejas de trigo. Contudo, quis o destino que, em 1602, o último Degenberg, Hans Ⅷ, morresse sem deixar herdeiros. O lucrativo negócio foi logo reivindicado pelo Duque Maximilian I, e, desde então, a dinastia dos Wittelsbach passou a fabricar, conjuntamente, Weizenbier na sua Hofbräuhaus em Munique.
A Casa de Wittelsbach manteve o domínio por quase 200 anos até que, por interesses políticos, a partir de 1798, a concessão começou a ser dada para outras «cervejarias da corte» e alguns monastérios.
Somente em 1872, já com o declínio comercial do estilo, diante da procura pelas cervejas à la manière de Plzeň, Georg Schneider Ⅰ tornou-se o precedente burguês a adquirir o direito de produzir cervejas de trigo. Já na quarta geração da família, comandada por Mathilde Schneider, em 1907, a Schneider Weisses Bräuhaus inovou e lançou a Aventinus como sendo a primeira Weizenbockbier, em suma, uma cerveja de trigo com a potência de uma Doppelbock.
Outros sítios adjacentes, que actualmente compreendem o estado da Baviera, do mesmo modo, criaram as suas interpretações para as Weizenbiere. Segundo a tradição de secar o malte verde com lenha de faia, os cervejeiros de Bamberga, na Francônia, desenvolveram a Rauchweizenbier, uma cerveja de trigo com pujantes notas defumadas a lembrar bacon ou presunto. E a cidade de Ratisbona, no Alto Palatinado, criou a Roggenbier, uma receita que substitui maior parte do malte de trigo pelo malte de centeio, que lhe confere mais corpo e uma peculiar picância.
Como adendo, é importante ressaltar que até a Idade Moderna todas as cervejas eram relativamente escuras. Nas línguas germânicas, as palavras ‘trigo’ e ‘branco’ têm a mesma raiz etimológica e, tão somente, por isso as cervejas de trigo eram (e ainda são) comummente chamadas de «Weißbier» – literalmente, cerveja branca. Contudo, por uma questão de antítese, é preferível designar as cervejas que compreendem esta categoria como «Weizenbier» – traduzido, cerveja de trigo. Então, as versões ancestrais com maltes escuros, tostados, ficam identificadas como Dunkels Weizenbier enquanto as versões contemporâneas com maltes claros como Helles Weizenbier.
Raros, alguns rótulos trazem nomenclaturas como «Dinkelbier» ou «Emmerbier» que nada mais são do que cervejas feitas com outras variedades além do trigo-comum; a saber, respectivamente: espelta e farro.
Acredita-se que as cervejas de trigo no sudeste do actual território da Alemanha foram assimiladas de exemplares medievais oriundos do vizinho Reino da Boémia, que eram escoados para lá através da fronteiriça Floresta Bávara por volta dos séculos ⅩⅡ e ⅩⅢ. Todavia, os efeitos da Guerra dos Trinta Anos tiveram um peso imenso sobre as Terras da Coroa da Boémia e consecutivamente sobre a produção cervejeira local que só viria a recuperar séculos mais tarde. Embora diminutas, na contemporaneidade, os tchecos ainda fabricam cervejas feitas com pelo menos ⅓ de malte de trigo, classificadas como «Pšeničné Pivo».
Em meados do século ⅩⅩ, a Weizenbier perdeu, uma vez mais, popularidade, nesta ocasião, por estar associada ao paladar de pessoas mais velhas, ao ponto de muitas cervejarias cessaram sua produção. Felizmente, de 1965 em diante, a demanda ressurgiu. Na actualidade, são as cervejas mais consumidas na Baviera e detêm cerca de 10% do market share alemão, sendo exportada para todos os cantos do mundo.
Uma Weizenbier contém de 50% a 70% de malte de trigo, que confere à cerveja uma sensação de cremosidade e uma espuma mais densa e persistente. Embora o trigo, rico em proteína, também dê turbidez, parte da opacidade característica provêm de leveduras em suspensão. Dentre as Helles Weizenbier, onde esse aspecto turvo é mais visível, as cervejas filtradas, límpidas e cristalinas, são tidas como Kristall-Weizenbier em oposição às naturalmente turvas Hefe-Weizenbier, por vezes, indicadas com «Naturtrüb» na etiqueta.
Na cultura alemã, as cervejas de trigo estiveram associadas a uma dieta saudável, porém as recentes preocupações com o consumo de álcool fizeram surgir versões com baixo teor alcoólico, tidas como Leichtes Weizenbier, ou mesmo não alcoólicas, rotuladas como «Alkoholfreies Weizenbier».
Todas essas Weizenbiere bávaras têm em comum uma assinatura sensorial das leveduras de alta fermentação empregadas. Essa linhagem produz distintivos ésteres a lembrar banana e fenólicos a lembrar cravinho, e ainda, subtis notas de baunilha e tutti-frutti. O balanço de aromas tende sempre aos subprodutos da fermentação, seguidos das nuances dos maltes conforme os estilos; enquanto o caráter do lúpulo é pouco expressivo.
Nos últimos anos, para alinhar-se à tendência de cervejas mais lupuladas, como as IPA, algumas cervejarias adicionaram a denominada «Hopfenweizenbier» ao seu portfólio que, quiçá, pode vir a vigorar-se como um novo sub-estilo.
Artigo publicado na revista O Escanção №172 Março/Abril de 2020
pela Associação dos Escanções de Portugal (EAP)
na seção “Com a Palavra, o Especialista”.