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Bitter, um prelúdio da IPA

Bitter, um prelúdio da IPA

BITTER, UM PRELÚDIO DA I.P.A.

Quando pensamos em cervejas com amargor de lúpulo, logo as India pale ales nos vêm à mente, porém, antes deste fenômeno alcançar o paladar de consumidores ao redor do mundo, outra cerveja, que é sua ancestral, ficou literalmente conhecida pelo epíteto de ser amarga, a British Bitter.

É importante mencionar que a Bitter não se teria tornado a bebida nacional da Inglaterra, ou melhor, não teria existido, sem que dantes algumas transformações ocorressem no cenário cervejeiro da Grã-Bretanha.

Até o final do século ⅩⅣ, os insulares não adicionavam lúpulo à cerveja – acredita-se que tal prática foi introduzida por imigrantes flamengos que se estabeleceram em Kent, na região Sudeste da Inglaterra. Os britânicos produziam uma bebida alcoólica fermentada a partir de grãos maltados (sobretudo, de cevada) conhecida pelo nome anglo-saxão «ale» e, entre os séculos ⅩⅤ e ⅩⅦ, utilizavam o nome germânico, emprestado do continente, «beer» para distinguir a bebida contígua que era temperada com lúpulo.

Para felicidade dos hop-heads, do século ⅩⅧ em diante, o emprego do lúpulo foi generalizado em função das suas qualidades de conservação e equilíbrio de amargor. Doravante, ambas denominações para designar a cerveja, formulada como conhecemos, tornaram-se sinônimos na língua inglesa; embora, hoje em dia, utilizemos o termo ale para nos referirmos às cervejas de alta fermentação, como é o caso de todos os estilos britânicos.

Nesta altura da Idade Moderna, algumas das inovações tecnológicas que corroboraram com o pioneirismo industrial do Reino Unido começaram a surgir. Uma delas foi a conversão do carvão betuminoso em coque; isso fez com que, não só, se eliminassem compostos como enxofre, alcatrão e demais gases dos quais tornavam esse carvão mineral inadequado ao processo de malteação, como também, passou a permitir que houvesse um maior controle térmico nas fornalhas.

Por volta de 1643, mestres-malteiros utilizaram o coque como combustível nos fornos para a etapa de secagem do malte verde e, a partir de temperaturas não superiores a 85℃, obtiveram o revolucionário malte «pale» – um malte “pálido”, derivado da cevada de I3nverno de duas fileiras, sem aquelas enjoativas notas defumadas e com uma maior concentração de amido e enzimas se comparado aos então maltes tostados.

Logo o malte pale passou a ser incorporado como malte base em diversos estilos como resultado de seu maior rendimento e, na segunda metade do século ⅩⅦ, surgiram as primeiras pale ales, que, apesar do nome, para os nossos padrões atuais, seriam consideradas cervejas relativamente escuras, variando a sua intensidade de cor desde o dourado profundo até ao âmbar e ao cobre.

Uma destas primeiras pale ales era conhecida como «October ale», uma cerveja extra que podemos categorizar como Strong British Ale, produzida nos meses de Outubro e Novembro para fermentar em barricas durante o Inverno. Eram brassadas com malte pale e lúpulos frescos recém-colhidos, cultivados em Kent, e, após a fermentação primária, através da técnica de dry-hopping, recebiam um fardo de lúpulos secos que lhe conferiam estabilidade microbiológica para maturar, ainda em barris, por um ano ou mais.

Era prática comum, entres os cervejeiros, no intuito de economizar insumos e energia, extrair distintas densidades de mosto a partir de um único grist, isto é, produzir mostos com diferentes concentrações de açúcares, que resultariam em sub-estilos congêneres, mas com graduações alcoólicas diferenciadas, consoantes às taxas de impostos. Portanto, enquanto as cervejas resultantes mais potentes eram reservadas às ocasiões especiais, as “cervejas menores” eram consumidas no dia-a-dia; visto que a potabilidade da água não era confiável.

Tradicionalmente, todas as cervejas, ainda jovens, acondicionadas em barris, refermentavam e concluíam o processo de maturação alocadas nas adegas das tabernas para serem consumidas bem frescas logo que estivessem prontas. Estas barricas permaneciam armazenadas a uma temperatura ideal e as bebidas então eram bombeadas manualmente ou vertiam por gravidade até as torneiras do bar onde eram servidas aos clientes sob baixíssima carbonatação.

Dado que os estabelecimentos de outrora não possuíam qualquer identificação nas torneiras sobre as cervejas vendidas, para requisitar uma pale ale, os fregueses habitualmente pediam “a pint of bitter”, ou seja, um quartilho da cerveja amarga, na intenção de distingui-la das contemporâneas English mild ales, que possuíam um perfil leve, mais adocicado, com balanço mais para o malte e com pouco lúpulo.

Como impressão geral, a família das British pale ales possui maior equilíbrio entre o dulçor do malte e o amargor do lúpulo, o que as tornam mais palatáveis. Enquanto o malte pale empresta moderadas notas de caramelo; as variedades autóctones de lúpulos ingleses, como Golding e Fuggle, abarcam notas florais, herbais, terrosas e levemente cítricas; alguns ésteres frutados, como laranja ou banana, metabolizados pelas leveduras de alta fermentação, também podem ser percebidos. A intensidade de aromas e de sabor associada às matérias-primas acompanham a progressão do teor de álcool.

Para uma cerveja corrente, as bitters apresentam relativa complexidade; essas ales finas são consideradas a assinatura do cervejeiro, onde o mesmo expressa toda sua habilidade. Uma mesma cervejaria comumente produzia duas receitas: uma “ordinária”, mais amena, e outra “melhor”, mais aprimorada, respectivamente tidas como a Ordinary Bitter e a Best Bitter.

A Revolução Industrial, nos conseguintes séculos ⅩⅧ e ⅩⅨ, alavancou a produção cervejeira e ajudou a popularizar o estilo por cerca de 200 anos até rivalizar com as pale lagers.

Variações regionais da British Bitter podem ser observadas por todo Reino da Inglaterra: exemplares mais claras e cítricas podem ser encontradas na Grande Londres e no Sudeste; as versões com maior dulçor residual são relacionadas às Terras Médias; em contrapartida, as mais secas ao Noroeste; o Sudoeste tem um perfil mais frutado; enquanto o País de Gales possui as mais maltosas; e Yorkshire dispõe de bitters mais macias e cremosas.

Além disto, os mais ortodoxos interpretam as pale ales engarrafadas como um estilo distinto das acondicionadas em barris, consideradas «real ales». Não é questão de rótulo, de facto, a condição em garrafa modifica sua evolução. As English Pale Ale clássicas são geralmente versões robustas para exportação, uma Strong Bitter com maior álcool, amargor e carbonatação.

O mesmo acontece com as receitas preparadas para a exportação em barris que apresentam suas particularidades e as configuram como outro sub-estilo. Além da maior maltosidade, teor alcoólico e dosagem de lúpulo como características conservantes; o estágio em barrica sob agitação nas viagens de navio e temperaturas elevadas ao atravessarem climas tropicais, propiciavam maior extração de polifenóis que conferem amargor – como é o caso das pales ales destinadas aos conquistadores estabelecidos na Índia britânica. Sim, estamos a falar do que mais tarde se entenderia como a notável English India Pale Ale.


Artigo publicado na revista O Escanção №174 Julho/Agosto de 2020
pela Associação dos Escanções de Portugal (EAP)
na seção “Com a Palavra, o Especialista”.